quinta-feira, 4 de agosto de 2022


William Menkes, da série Fragmentos de luz, 2020, água-tinta, 30x21cm


Mostra CONTINUUM



Continuum, palavra derivada do latim, pode ser traduzida literalmente como contínuo e representa uma série de acontecimentos sequenciais em que se percebe a continuidade de algo entre o início e o fim.

A partir dessa ideia, a mostra homônima reúne obras produzidas pelos ex-alunos da graduação em Artes Visuais da UFMS, Alice Yura, Evandro Prado, Kaio Ratier, Mariana Arndt, Leonardo Mareco, Lúcia Ribeiro, Luís Salgado, Victor Macaulin, William Menkes e Zilá Soares, artistas que seguem com investigações que sinalizam plena autonomia na elaboração de seus interesses estéticos/conceituais, dando continuidade ao processo de formação para se inserir ou se consolidar profissionalmente no circuito artístico local e nacional.

Os trabalhos reunidos exemplificam a multiplicidade e o hibridismo da produção contemporânea com propostas desenvolvidas em pintura, desenho, gravura, fotografia, videoarte entre outras. Traduzem as inquietações e os acontecimentos que entrecruzam as trajetórias dos artistas, tais como o cotidiano e suas problemáticas sociais, memória afetiva e o contorno geográfico de culturas e lugares, assuntos pertinentes que aguçam o pensamento criativo e ampliam a capacidade de perceber e revelar algo.

O trabalho de Alice Yura opera um repertório sensível que mescla fatos biográficos, sentimentos e relações humanas, identidade e gênero, o corpo e sua transformação. Performance, fotografia e videoarte são meios usados para amplificar a voz engajada da artista que propõe uma reflexão mais atenta sobre algumas questões sociais, entre elas, a ruptura da cisheteronormatividade.

Em dois momentos distintos de sua produção, as obras de Evandro Prado afirmam sua percepção crítica de temas relacionadas ao poder e à crença, questões que se contaminam e produzem efeitos sociais significativos. Seja num detalhe arquitetônico do Palácio da Alvorada, sustentado por uma frágil estrutura corroída ao longo do tempo, seja na relação inusitada entre religião e o consumo massificado de valores e marcas comerciais. Se apropria de imagens religiosas, personagens e monumentos históricos para, de forma contundente, desconstruir e ressignificar valores desgastados da sociedade contemporânea.

Kaio Ratier usa como referência em suas pinturas as ilustrações e o papel das revistas de moda de luxo na França, no início do século XX, mencionando a ativa participação dessas publicações na sociedade europeia, consideradas como fenômenos de mídia e responsáveis pela instituição de comportamentos. Na série Elegância e Sobrevivência, o artista representa o processo de libertação do uso do espartilho, o que determinou uma nova concepção do feminino. Observando também a maneira como as revistas e a sociedade reagiram às vésperas e durante a primeira guerra mundial, em outra proposta, de forma inusitada, insere na personagem uma máscara de gás como acessório necessário do traje de luxo para festa.

Leonardo Mareco chama atenção para os problemas econômicos dos que enfrentaram dificuldades e perdas durante o processo de isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Através de técnicas como lambe-lambe (pôsteres artísticos geralmente fixados em espaços públicos) o artista ilustra uma atividade informal que foi e ainda é uma opção de renda para milhares de trabalhadores, o serviço de delivery, mencionando a precarização do trabalho, o desemprego e a pobreza tão evidentes no cotidiano das cidades em função da crise socioeconômica que o país enfrenta.

As gravuras de Lúcia Ribeiro materializam algumas das memórias afetivas da artista. A arquitetura de um antigo engenho de açúcar, a paisagem interiorana paulista e a história que sobrevive ao tempo são elementos articulados numa monocromia gráfica que ressalta o aspecto bucólico dos cenários escolhidos. A paisagem é tema recorrente na produção da artista, explorando na gravura em metal (técnica artística em que a imagem é gravada numa matriz de metal e depois impressa em papel), os efeitos da corrosão do ácido na placa de cobre para definir as nuances de cinza e preto que definem a paleta monocromática nas imagens.

Luis Salgado busca em suas abstrações provocar o ato perceptivo do observador para a interpretação livre daquilo que se vê, daquilo que é possível reconhecer sem necessariamente se prender a um porquê ou para quê. Cor, símbolos, manchas, são recursos que formam sua grafia pictórica, reforçando a amplitude da imagem para estimular nosso raciocínio, de forma a ultrapassarmos o limite do reconhecível que muitas vezes inibe o acesso à informação na obra. Percipuum, conceito sobre percepção na semiótica peirceana, é a questão que o artista busca elaborar visualmente nesta série de pinturas.

Mariana Arndt chama a atenção para o trabalho infantil e faz relações com elementos característicos do imperialismo norte-americano que, nas imagens, aparece exemplificado pelas marcas multinacionais Coca Cola e Burger King, salientando nesse discurso o alcance das ações agressivas do capitalismo. Faz intervenção em vermelho nas cenas retratadas como forma de salientar a violência simbólica do processo de imposição de determinados valores culturais. A grafia aparente nas imagens foi realizada por um menino que vive na fronteira Brasil/Paraguai, com frases da música Latinoamerica - Calle 13. Traz para a discussão questões comuns entre os dois países: pobreza, desigualdade social e descaso para com os direitos humanos. Na leitura possível do que é retratado, cito o trecho final da canção mencionada: No puedes comprar mi vida!

A problemática social é salientada em diferentes abordagens nos trabalhos de Victor Macaulin. No graffiti, na pintura e no desenho, a questão racial, a luta da classe trabalhadora pela sobrevivência e pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, são alguns dos temas desenvolvidos na produção do artista. Em sua pesquisa plástica, usa tintas confeccionadas com pigmentos naturais (terra, carvão, cinzas entre outros) combinando-as com materiais industrializados sob suportes alternativos, entre eles o papelão, material comumente descartado e reutilizado nos processos de reciclagem. Evidenciando o trabalho de coleta seletiva de resíduos, trata de duas questões importantes desse contexto: o trabalhador que recolhe o lixo e a ação pública que visa minimizar danos ao meio ambiente.

Cor e luz são elementos importantes na obra de William Menkes. No protagonismo do preto e branco na gravura artística, o artista manipula matrizes de diferentes cores para elaboração de imagens que retratam alguns de seus cenários cotidianos. O controle articulado entre claro e escuro ora realça contrastes de luz e sombra no desenho, ora reduz a iluminação para que os objetos se insinuem numa penumbra densa tratada em tons de ocre, sépia e preto, criando, a partir dessa combinação, uma atmosfera poética de silêncio e de mistério.

Nos desenhos de Zilá Soares, as formas dos corpos masculino e feminino são esboçados e enquadrados estrategicamente para se evidenciar/insinuar as áreas sensuais que estimulam diversos pensamentos e desejos. O nu artístico sempre foi um tema recorrente na história da arte, representado de forma clássica ou nas distorções dela. Um interesse que atraiu e atrai artistas para a elaboração de distintas visualidades que, em alguns casos, provocam o comportamento voyeur do observador. Com poucos elementos e recursos gráficos, a artista sintetiza a interpretação do corpo humano para mencionar sobre nossa relação com a nudez, padrão estético de beleza, sensualidade, erotismo e as diversas interpretações e significados que damos a isso.

Um conjunto diversificado de 20 obras que ilustra de forma coesa o discurso polissêmico da arte contemporânea. Da figuração à abstração, cada artista desenvolve e materializa suas propostas através de experimentações em diferentes linguagens plásticas, resultando em direcionamentos estéticos apoiados ou não na tradição de representação.


Rafael Maldonado
Curadoria/Julho/2022

Mostra Continuum
De 8 de agosto a 9 de setembro de 2022
Galeria de Artes Visuais da UFMS
Piso térreo do Bloco 8, Campus Universitário S/N, Campo Grande - MS


 



ÁLBUM 4 MÚLTIPLOS

 

O múltiplo de arte é uma modalidade de produção de obras que quebra com algumas categorias tradicionais da arte. Permite, em função da adoção de diferentes matrizes ou procedimentos tecnológicos geradores de exemplares, a criação de cópias seriadas onde cada exemplar possui autenticidade de original. O álbum 4Múltiplos apresenta essa possibilidade plural no trato da obra seriada, ilustrada nas propostas de Constança Lucas, Isaac Camargo, Rafael Maldonado e Sérgio Bonilha.

O conceito de multiplicidade na arte contemporânea transita em diferentes linguagens, suportes e processos de produção, funcionando como estratégias de circulação de ideias sem que se diminua a importância dessa modalidade em relação às que operam com o singular, com o exemplar único. A pluralidade se dá tanto conceitual quanto materialmente. O múltiplo de arte não é considerado obra de menor valor, tampouco põe em questão a importância e a integridade da imagem, mas sua proposição viabiliza o alargamento do campo de ação e consumo de trabalhos produzidos em série em linguagens como gravura, fotografia, escultura, imagem digital, objetos entre outras.

Constança Lucas elabora na trama minuciosa de linhas uma rede de formas geométricas irregulares que, combinadas, atuam para compor a massa visual e rítmica do desenho. Na repetição da palavra paz, disposta em intervalos aleatórios, explicita uma mensagem atual e urgente que ecoa entre os efeitos gráficos de pontos e traços delicados.

Isaac Camargo opera na aproximação da fotogravura usando a imagem digital impressa em papel, transposta e fixada em lâminas metalizadas. Num processo de manipulação meticulosa faz menção aos primeiros experimentos da fotografia, buscando no desbotamento intencional da cor, meios para revelar as nuances de memórias pessoais.

Rafael Maldonado reposiciona a paisagem na geografia e temporalidade de um lugar idealizado. Os elementos são modelados pela fatura de entretons monocromáticos da água-tinta (técnica de gravura em metal) que estabelece o clímax articulado da imagem, onde tudo se define no recorte instantâneo que enquadra e perpetua a cena.

Sérgio Bonilha adota procedimentos combinados (tomada fotográfica, edição digital, serigrafia e corrosão em ácido) para gravar em fenolite cobreado uma paisagem reticulada, atualizando os modos de apropriação e incorporação de tecnologias na arte em prol de redirecionamentos estéticos, traduzindo, na complexidade da linguagem, sua percepção de objeto múltiplo.

Os trabalhos que compõem este álbum exemplificam a concepção do múltiplo trazendo abordagens distintas no manuseio da imagem, ampliando, assim, a significação do sentido da obra artística.   

R.M./ Abril/2022

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Exposição de Edson Castro no Sesc Cultura, de 4 de maio a 31 de julho de 2018

Edson Castro, Um verde de paisagem desnudada, grafite e pastel oleoso, 180x130cm, 2018

Proponho aqui algumas impressões a respeito do conjunto dos trabalhos de Edson Castro, reunidos na exposição que inaugurou a galeria do Sesc Cultura, em Campo Grande, no dia 4 de maio de 2018.

Tinha expectativas em relação a essa nova série do artista, uma vez que esperava verificar os desdobramentos das questões expressivas que sempre estiveram presentes na sua produção.

Nos trabalhos, de grandes dimensões, o embate entre desenho e pintura, figura e abstração, continuam presentes. O grafite esboça os espaços que são coloridos por giz oleoso, resultando em formas e manchas modeladas na sucessão de riscos e apagamentos por massa de cor.

No grafismo pictórico de Edson Castro, a definição dos riscos e áreas de cor evidenciam a energia desprendida na execução de cada obra. O jogo entre saturação e transparência se estabelece. Os traços têm ritmo frenético e ruidoso, culminando em explosão visual contínua na qual não existe polarização de um eixo central na composição.

A paleta cromática é densa, com tons rebaixados que se fundem e determinam a tensão e o clímax de cada obra. As misturas são imprecisas e deixam experiência tonal mais espontânea, despojadamente esparramada e sem propósito fixado na forma.

Penso se há mesmo necessidade de dar enunciado às obras, já que, em se tratando de estilos não figurativos, isso raramente ajuda ou conduz a interpretações. Entretanto, destaco dois títulos na série de Edson Castro que me fizeram lembrar Manoel de Barros: “O anoitecer nas palavras” e “Um verde de paisagem desnudada”. Neles encontrei conforto. Aliás, trago aqui as palavras do próprio poeta sobre o trabalho desse artista: “Vi que há um perfume de sol nos seus azuis. Uma insistência de solidão nas imagens”. Oportuno e lindo encontro de duas artes.

Edson Castro é artista de muitos acertos. O conjunto em exposição é competente na sua proposição, demonstrando o comprometimento do artista com suas convicções estéticas. Resulta da necessidade de fazer e refazer, de arriscar e experimentar. Sintoma de maturidade.

Evidencio ainda que o espaço Sesc Cultura de Campo Grande se torna importante instituição educativa, trazendo benefícios para a formação cultural da sociedade. Sua localização estratégica, num edifício histórico da área central, possibilitará maior fluxo de pessoas e ampla disseminação da produção artística. Assim como a ótima exposição de Edson Castro, que sua programação continue repleta de boa arte!

Rafael Maldonado
                                                                                                                                             Maio de 2018

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Quando da matriz e da cópia - gravuras do acervo do MARCO, exposição apresentada no Museu de Arte Contemporânea de MS, no período de maio a junho de 2016


Vânia Pereira, s/data, ponta-seca

O exercício curatorial abrange investigações conceituais que propõem novos desdobramentos ao discurso artístico. Consiste na reorganização e ampliação do campo de leitura estética a fim de ressignificar alguns sentidos existentes a priori.

Combinar linguagens e vislumbrar nas diferenças entre as obras possibilidades para extrapolar consensos requer cuidadosa articulação dos aspectos que estabelecem relações assimétricas entre elas, reposicionando estrategicamente a narrativa original para atender outras intenções de comunicação.

            A exposição Quando da matriz e da cópia reúne gravuras cujas imagens foram previamente trabalhadas numa matriz - madeira, pedra ou metal -  e impressas em papel. Apesar do princípio da multiplicidade, característico dessa linguagem, as cópias não diminuem a potência nem o valor individual de cada obra.

            O embate com a matéria (ato de gravar) sempre determina os caminhos para concepção dos trabalhos. A corrosão do metal, o talho na madeira e a acidulação da pedra são processos específicos para construção e fixação das imagens nas matrizes. Traços largos, linhas finas, tramas, manchas e gradação de tonalidades são faturas gráficas que compõem o repertório pessoal do gravador.

            A dramaticidade das imagens, geralmente, é valorizada através de relevantes contrastes entre preto e branco em rica combinação de elementos monocromáticos, ou, em alguns casos, com presença controlada da cor.

            Processo que exige concentração, atividade mental e intensa conexão entre o artista e a matéria, forjando relação de cumplicidade que combina controle e expectativa, tempo e ansiedade, desejo e realidade.

A linguagem da gravura é repleta de nuances, invenções e singularidades. Elaborada meticulosamente numa dimensão poética que atravessa o tempo e afirma sua permanência entre procedimentos dissonantes da produção artística contemporânea. 



Rafael Maldonado*
abril, 2016

*professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atua como curador independente.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Estratégias para dimensionar a delicadeza e o afeto, exposição de Ana Ruas na galeria Andrea Rehder Arte Contemporânea, em São Paulo, de 18 de maio a 27 de junho de 2016



Ana Ruas, 2016, assemblage


Sem pretensão de questionar o papel da mulher e os desdobramentos de sua atuação social, nessa série de trabalhos Ana Ruas se apropria de artefatos jornalísticos produzidos no Brasil entre as décadas de 1930 e 1960, com o intuito de revelar o discurso que idealizou a condição feminina na personificação da esposa prendada, submissa, dedicada ao lar e à família.
Nesse período, a educação da mulher visava suprir demandas domésticas na execução atividades manuais que eram, geralmente, passadas de mãe para filha. Corte, costura e bordado faziam parte das prendas que a esposa deveria exercer em sua função familiar, e, nesse contexto, publicações voltadas para o público feminino, tais como o Jornal das Moças e o Jornal da Mulher, ofereciam suplementos e encartes dedicados à essas atividades. Quase como estratégias para dimensionar a delicadeza e o afeto.
Ana Ruas trata, sem pieguismo, desse momento cultural que definiu o campo de atuação das mulheres sob imposição de valores morais que restringiram sua atuação na sociedade. A artista não se pronuncia criticamente, mas pontua a condição da mulher realçada, por exemplo, na indagação do artigo publicado num dos jornais de seu arquivo: “você está pronta para ser uma esposa amiga?”.
De posse de vasto material (colecionado e guardado por pessoas da família) que inclui recortes de revistas e encartes de jornais para o público feminino, além de moldes com sugestões de figurinos e ilustrações de diversos temas para atividades como pintura, bordado e costura, Ana Ruas retoma e amplia o repertório de discussão de questões, outrora evidenciadas em momentos distintos de sua produção.
As imagens e os textos selecionados pela artista são encarados como faturas estéticas que ganham nova significação na estrutura visual dos trabalhos. Na combinação entre pintura e colagem sob suportes de papel e madeira, Ana Ruas expande a questão/função pictórica que ora se manifesta no plano bidimensional (frente), ora se revela na tridimensionalidade (frente/verso) de pequenos painéis que se movimentam pelas dobradiças que os unem, revelando informações que ficam evidentes ou ocultas, em função da posição determinada pelo observador.
O jogo que aqui se estabelece valoriza a diluição do processo artístico homogêneo e propõe parâmetros de conversão da pintura na incorporação de elementos que, na medida da visualidade, contribuem para ressignificar a linguagem e ilustrar o teor interessado de cada trabalho.
Operando entre pintura, colagem e objeto, a artista regula a plasticidade das linguagens de modo a obter, pelos contrastes, uniformidade e conexão entre elas. Reorganiza e combina elementos que primam pela fragilidade, delicadeza e transparência, com outros de opacidade, aspereza e rigidez, numa proposição estética ampla de variações e possibilidades.


Rafael Maldonado*
maio/2016

* professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, atua como curador independente.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Reformulação de sentidos nas colagens de Angela Miracema, exposição apresentada no Museu de Arte Contemporânea de MS, setembro/outubro de 2015

Colagem de Angela Miracema
Diversos recursos de linguagem são usados pelos artistas para potencializar os processos de criação e evidenciar suas ideias e interpretações a respeito dos assuntos e fatos que nos envolvem diariamente. Pintura, desenho, gravura, colagem, instalação, entre outros, são procedimentos que articulam o pensamento artístico e colocam em evidência o jogo de representação que reposiciona as relações entre superfície, plano, espaço e matéria.

No caso dessa exposição, o procedimento adotado é a colagem, cujo processo se inicia na coleta de recortes/materiais que irão compor a paleta de cores e texturas que determinarão a direção tonal de cada trabalho. Escolher a imagem e definir onde ela será fixada requer paciência e delicadeza na busca do encaixe perfeito de cada peça.

Nas colagens de Angela Miracema as ideias podem ser evidenciadas pelo arranjo de imagens que são combinadas sistematicamente num esquema de aproximação e sobreposição de figuras, operando um recurso visual que determina o sentido narrativo dos trabalhos.

Em algumas obras, agrupamentos de formas e cores vibrantes podem criar ritmo frenético na composição e dar um aspecto psicodélico. Noutras, o contraponto entre recortes de dimensões diversas, posicionados estrategicamente, proporcionam as pausas visuais necessárias para acomodar o olhar do observador.

As colagens não explicitam de imediato os assuntos de que tratam, mas, na observação atenta aos detalhes podemos perceber os interesses que motivaram a construção de cada trabalho. Alguns temas podem ser percebidos em função da similaridade ou repetição das imagens utilizadas, cabendo ao observador estabelecer as conexões. Colagens sobre papel e madeira e objetos-colagens são variações possíveis para corresponder ao enunciado da mostra Mural dos sonhos ou emergência dos desejos.

No mural estético de Angela Miracema os fragmentos de imagens não mais representam a função que os caracterizou a priori. Nessas propostas eles são reordenados como superfícies de cor e estabelecem relações cromáticas que dissociam as formas de interpretação que tentamos aplicar às obras.

O valor simbólico da colagem está na proposição do deslocamento perceptivo entre o que vemos e o que conseguimos relacionar a partir disso. A deposição dos planos, um dos fundamentos do movimento cubista que adotou a colagem como outro ponto de inflexão da superfície expressiva, no início do século XX, é recurso necessário para a apropriação de imagens e reformulação de seus sentidos.

A visualidade elaborada nas colagens de Angela Miracema utiliza como matéria-prima recortes de revistas, jornais, papéis diversos, tecidos, objetos, entre outros, propondo uma estrutura cenográfica onde os sentidos correspondem ao fluxo visual que combina as referências óticas e materiais que são excessivamente disponibilizadas e consumidas no nosso cotidiano.


Rafael Maldonado*
setembro/2015



*professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, atua como curador independente.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Crise instaurada: considerações sobre o Salão de Arte de Mato Grosso do Sul 2014

 Lula Ricardi, sem título, papel fotográfico, madeira, carimbo, tinta carimbo, 60 x 60 cm, 2014


Os salões de arte assim como as bienais correspondem a um formato de exposição cuja complexidade se manifesta a partir da escolha dos artistas e/ou das obras selecionadas que são definidas por uma comissão curatorial ou através do conceito/tema adotado pela curadoria - no caso das bienais.
São eventos que buscam oferecer um panorama atualizado da produção artística em circulação - nacional e internacional - reunindo nomes consagrados e outros em ascensão no sistema da arte, promovendo um repertório de propostas e direções para a discussão das questões artísticas em evidência.
Entretanto, esses formatos de exposição vêm sendo criticados e seus sentidos questionados por agentes das mais diversas áreas do campo artístico. O fato é que são eventos que induzem a formulação de opiniões sobre suas propostas, comportando-se como termômetros de interesses, emoções e insatisfações.
Pensando no título da 31ª edição da Bienal de São Paulo[i] - “Como (falar sobre) coisas que não existem” - é pertinente entender que a arte proposta em eventos dessa natureza nem sempre é a arte que o público deseja encontrar. Criam-se expectativas que muitas vezes não são correspondidas em função do perfil dos artistas selecionados e das obras apresentadas. Então, em torno dessa complexidade, como entender ou falar sobre arte no/do momento atual?
No caso dos Salões de Arte, também são poucos os que ainda conseguem manter sua representatividade no panorama da arte no país, funcionando como mecanismo de reflexão sobre o papel e os percursos da arte na atualidade e, sobretudo, como vitrine para artistas em busca de sustentação de suas carreiras e divulgação de seus trabalhos.
Desde que foi retomada a realização do Salão de Arte de MS, em 2009, a expectativa era que esse pudesse ser um dos eventos mais importantes para as artes visuais no Estado, contudo, o que vi, desde então, com raras exceções, foi um projeto pretensioso que pouco contribuiu para a educação do público e para o campo artístico local. E não foi diferente na edição deste ano[ii], em cartaz no Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO). Após visitar a mostra, saí com a sensação de não ter visto nada inovador, nada surpreendente e quase nada que tivesse valido à pena ter me deslocado até o museu.
E tenho que discordar do que afirma a comissão de seleção e premiação do Salão: “as propostas apresentadas para a seleção expressam o fruto de longas pesquisas, revelando ao final, trabalhos coesos, de qualidade [...]”[iii]. Não! O que vi foi uma mostra equivocada e sem nenhuma relevância expressiva, com muitos trabalhos que pouco ou nada revelam sobre pesquisa, coesão e qualidade. Situação essa que acaba contribuindo para o questionamento da função e permanência desse tipo de proposta como referência/influência para o fomento da produção local e como meio de propor discussões e avanços para o entendimento das linguagens artísticas.
Entretanto, dos vinte artistas selecionados destaco Maiana Nussbacher e Lula Ricardi, ambos de São Paulo, cujas obras estão num nível de elaboração muito superior ao do restante apresentado na exposição, merecendo, assim, as premiações recebidas e devida incorporação ao acervo do MARCO.
A pintura de Maiana Nussbacher tem caráter psicodélico e efeito impactante. Opera com interessante repetição geométrica e cores vibrantes que são tratadas com precisão pictórica, numa minuciosa combinação entre tons e formas que se encaixam como num quebra-cabeça. Mesmo não proporcionando muitos argumentos para o debate sobre questões da pintura, é a melhor obra nessa linguagem na exposição.
Nos trabalhos de Lula Ricardi o rigor e a precisão na execução contribuem para que a leitura da ideia/conceito possa ser facilmente conduzida e identificada pelo espectador, num jogo entre imagem/palavra/objeto que articula os sentidos das obras.
Em uma das obras o mapa do Brasil está definido na sobreposição de números carimbados e com a palavra “escritura” repetida em diversas posições. Ao fixar alguns cabos de carimbos no suporte sugere que o país se comporta, em alguns aspectos, como um ultrapassado mecanismo burocrático. Uma relação interessante para pensarmos, nesse sentido, o formato das bienais e dos salões de arte: seriam também artefatos em obsolescência?
As exposições em formato de bienal ou salão de arte são sempre polêmicas e apresentam pontos altos e baixos. São eventos abertos que permitem reflexão, questionamento e diálogo. Para o público o desafio é ter interesse em buscar o melhor que as exposições oferecem e descobrir novas possibilidades de se relacionar com as obras, tentando detectar, onde é possível, o conhecimento nelas contido.
Assim, espero que em edições futuras o Salão de Artes de MS possa cumprir seu papel educativo e impulsionar o setor artístico local, apresentando propostas inovadoras e significativas em consonância com a produção dos importantes circuitos de arte no país.
E, discordando novamente do argumento da Comissão de seleção, este até poderia ser “um dos importantes salões de arte do Brasil”, desde que algumas medidas importantes tivessem sido adotadas para, de fato, torná-lo eficiente.
Críticas e contribuições são/serão necessárias para produzir efeitos positivos e ajudar no processo de amadurecimento desse projeto. Nesse sentido, considero como importante para o Salão: 1) Ter na comissão de seleção e premiação profissionais que tenham conhecimento das questões apontadas na produção artística em evidência no país; 2) Ampliar o valor da premiação para atrair um número maior de artistas com a possibilidade de melhoria da qualidade das obras inscritas/selecionadas; 3) Pensar um plano de divulgação nacional capaz de dar maior visibilidade ao evento.
Soluções simples que farão grande diferença, pois, da forma como esse salão se apresenta, infelizmente está muito aquém do que poderia contribuir e significar na nossa realidade artística. A crise está instaurada.

Rafael Maldonado[iv]
Novembro/2014

Notas
[i] 31ª edição da Bienal de São Paulo, de 06 de setembro a 07 de dezembro de 2014.
[ii] Salão de Arte de MS, de 5 de novembro de 2014 a 20 de fevereiro de 2015.
[iii] Retirado do texto elaborado pela Comissão de seleção e premiação do Salão de Arte de MS, edição 2014 - Douglas Raldi Herrera, Jonas Eduardo Marins de Santana, Zilá Soares -, publicado no catálogo da exposição.
[iv] Atua como Curador e é professor nos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).