quarta-feira, 11 de abril de 2012

Texto sobre a exposição 'Corpo em evidência, memória insinuada", curadoria de Rafael Maldonado

Lídia Baís

Evidenciar o corpo, historicamente falando, começa a rigor quando o ser humano reconhece outro ser humano. Nessa ocasião, os corpos eram grotescos, peludos e, no limbo da conveniência primitiva, muito maltratados. Os homens dessa época mal pressentiam os dotes de alguma espiritualidade: aos sinais de fumaça ainda não correspondiam, portanto, nenhum tipo de chama da arte.

De lá para cá, evidente que muita coisa mudou. Os Egípcios se fartaram com os grandes monumentos e de muita frontalidade. Os Gregos propuseram a beleza acima de qualquer suspeita, e o corpo assim representado, de tão belo, ficou, como diz o Kitsch, bem e mal situado, ao mesmo tempo.

No Renascimento, por se tratar de retomada histórica, bateu-se muito na tecla enjoativa do academicismo, mas surgiram pontapés importantes para o nascimento da arte moderna. E é justamente com ela que corpo e alma se fundem, paradoxalmente, numa total falta de compromisso.

A exposição “Corpo em evidência, memória insinuada" é bastante atenta aos preceitos da arte moderna. Os temas adotados são bastante remissivos, abordagens metalinguísticas se misturam a produções intrinsecamente icônicas, o que só vem incrementar, touch court, o trabalho, quase sempre sinestésico, da memória na produção da obra de arte.

Interessante notar que o repertório da maior parte dos trabalhos é, assim entendemos, de natureza assaz intimista, recordações de lugares de infância, dramas pessoais quase intransferíveis, cruzamento de linguagens afins - tais como fotografia e instalação, e mesmo nas escapadas mais surreais, verificam-se marcas de um grafismo com tendências ainda iconográficas, endêmicas.

Outro fator, também importante, é a boa diferença de idade entre as obras, o que nos dá um amparo, em termos de percepção visual, mais significativo na comparação das influências de cada autor.

Escolhemos, para comentar, a obra "Menino com livro", de Lidia Bais. E o fizemos porque é notória a ubiquidade da sua obra. É fundamental que se conjugue novamente cada item da sua simbologia, do seu vanguardismo histórico, do seu comportamento espalhafatoso, tributário da sua mente sempre em ebulição. Enfim, de uma genialidade artística que dificilmente encontrará paralelos ao longo de muitas gerações.

'MONALISA BAIS'

O quadro "Menino com livro", de Lidia Bais, flerta, a princípio, com o olho inadvertido. Com uma roupagem ensimesmada, os elementos pictóricos e semânticos saltam solenemente frugais e acadêmicos, e tudo concorre no sentido de ser mais uma obra figurativa.

Pois que, em tese, a artista, ao retratar o entretenimento de uma simples tarde de leitura, teria como propósito de 'pathos', uma mansidão do contemplativo, um apelo elementar sobre um cotidiano bem típico da arte mais Romântica. E ainda, por se tratar de uma figura jovem - que lê absortamente o seu livro - o principal motivo do quadro, imediatamente a ela se associa uma apologia ligeira sobre a questão da epifania do conhecimento, como sendo ele um correlato básico e inevitável para que todos entendam o sentido da própria vida.

Mas à medida que a abordagem prossegue, e com o repertório dos signos da arte acadêmica já remexido e ampliado, surgem elementos delicadamente mais transgressores e subliminares, com vínculos metonímicos próximos de um contexto semiótico muito mais prolixo do que parece.

E nesse sentido, há um apelo ecumênico latente no quadro: damos-nos conta de que a figura do jovem, na verdade, não é a de um menino.

Com efeito, e respeitando os cânones de uma semiologia que diferencia, na história da arte, traços masculinos dos femininos, podemos ficar certos de que o objetivo da artista era postar, laconicamente, a figura do andrógino. Efetivamente, temos no quadro uma menina com roupas de menino!

Essa constatação nos leva, com certeza, à vida de Lidia Bais, tanto na sua heresia intelectual e de comportamento, quanto à obscuridade e ao hermetismo no simbólico de sua arte.
Senão, vejamos: a artista teve vida intensa no meio artístico em Paris e São Paulo, sendo ativista e amiga confessa dos modernistas da Semana de 22, aderindo evidentemente a todos os preceitos revolucionários daquele momento criativo da arte antropofágica. Em dado momento seguinte, por força de circunstâncias materiais, é forçada a voltar até Campo Grande, onde se estabelece, trazendo na cabeça teorias sobre arte e vida - para ela, peças inseparáveis - que, então, a encapsulariam dramaticamente justamente por falta de um mínimo de feedback local, e onde passa a sofrer os horrores por estar anos-luz à frente de sua época.

Diante de tamanha crueza do ambiente encontrado, Lidia Bais se recolhe e passa da euforia ao desdém e ao desprezo. E, com certeza, manifesta esse sentimento através de uma fina ironia tanto em suas 'intervenções' (não é lenda, por exemplo, o fato de a artista sair travestida de homem pelas ruas e festas sem que ninguém percebesse...), quanto na estética de suas obras. Portanto, podemos dizer que o quadro "Menino com livro", ainda que permeie uma discrição subjetiva, com críticas sociais veladas e falsas pistas sobre o pseudo-academicismo, já apresenta, nas suas entrelinhas, uma extrema sofisticação no âmbito da interlocução das artes plásticas com a psique humana.

Lidia Bais, como vimos, opta pelo duplo sentido, pelo non-sense, e a partir daí pensamos na desconstrução do quadro, dando maior relevância a alguns detalhes.

   1- Um 'garoto' sentado, levemente inclinado, em uma cadeira, de encosto rústico e pernas torneadas, segurando e lendo um grande e surrado livro branco, não identificado; observe-se, também, que os seus pés cruzados mal alcançam o chão; - 'ele' veste por baixo uma camisa de golas salientes brancas, e, por cima, um terninho escuro que se 'submete' ao volume exagerado das golas, invertendo metaforicamente os valores referentes à etiqueta do detalhe, isto é, parecia estar fora de moda;

Observação: esse conjunto forma, intuitivamente, uma diagonal de fácil visualização, o que reforça a tese de que os recursos acadêmicos em Lidia Baís eram utilizados 'en passant', meios meramente pragmáticos e 'descartáveis'.

Realmente o que interessa nesse detalhe seria saber qual a razão mais forte que a levou a pintar um rosto tão dócil e feminino - e atribuí-lo com identidade masculina. Um auto-retrato dissimulado?

Um protesto - construtivo - contra o tratamento que recebia da cidade inteira que a acusava de ser louca? Sim, porque apesar de viver em tamanho inferno-astral regado a inúmeros preconceitos, ela, da forma mais inteligente e generosa, ainda sugeria em seus quadros que mulheres também podiam ser talentosas!

O enorme livro branco, associado (livre-associação?) às grandes golas brancas, talvez reforce essa tese da pureza da arte, que ela existiria (ou sempre existiu) independente do feminino ou do masculino.

Outra hipótese sobre as golas e o livro, na correlação das cores, textura e tamanho, é a de precisar o conhecimento como elemento multiplicador, ou seja, devemos estar à altura do conhecimento como uma necessidade fisiológica.

Mas o livro também, por ser um tanto disforme, sustentaria agora uma evasiva: a de que não devemos segurar muito tempo o nosso olhar sobre ele. Ele é um mero apêndice, quase uma incógnita, um passo intermediário que fará com que voltemos a observar com mais importância o rosto do 'garoto'.

E ao seu corte de cabelo Proustiano: não haveria, para Lidia Baís, na época, melhor refúgio literário e libertário do que a leitura de um livro como "Em busca do Tempo Perdido"!... E quanto aos pés, ligeiramente suspensos, podemos, longe de qualquer paroxismo, pensar que isso é um indicativo do tipo 'flanêur': o bom observador precisa 'levitar ' para ser um bom artista...

   2- Em frente ao 'garoto' existe uma pequena escrivaninha em verniz escuro, cuja gaveta está semiaberta (o livro que está nas mãos pode ter saído dali); sobre ela um outro 'livro', de cor bem avermelhada, que mais se parece com uma agenda ou um diário;

Observação: uma gaveta entreaberta sempre carregou, de forma clássica e arquetípica, a tintura anatômica do feminino. Afinal de contas, a vagina, no requinte do aplicativo e do eufemismo, ostenta, para além dos limites do imaginário e do grito primal, o caminho inicial da vida humana.

Observe-se que o livro maior, se sobrepondo à gaveta, também se insinua por essa configuração anatômica... Aí, talvez, como uma crítica à sociedade falocrática: o livro - ‘todo-poderoso’- delinea-se como a peça que ‘ocupa’, que ‘preenche’ – peça masculina, portanto.

Por outro lado, uma gaveta, ao se abrir, sugere ainda algo sobre termos o mistério ao alcance das mãos. Ao vê-la entreaberta, como está no quadro, podemos inferir que a artista nos provoca, numa incipiente metalinguagem, e insinua sobre as coisas desconhecidas no universo da vida e da arte; sobre o prazer de, por conta dessa ambiguidade dialética, sentir o nada e o mistério e de gozar a sua espiritualidade, tal qual um satori...

Se o livro, que sempre traz ideias novas, saiu da gaveta, devemos constituí-la como sua 'alma mater'. Mas também podemos devolvê-lo à gaveta e fechá-la. Estaria, nessa fugitiva, a artista se referindo ao controle do tempo?

De qualquer forma, agora temos um triângulo visual (o escuro da gaveta, o rosto ambíguo e o livro), cujos vértices, de rápida tangibilidade, oferecem ao quadro um boa mobilidade do olhar, mesmo sendo um movimento propriamente revulsivo, que pediria para afrontarmos nele o despertar da intratável realidade.

Quanto ao 'diário' sobre a mesa, dentro da composição do quadro, ele traz certo equilíbrio, atenuando um pouco a diagonal dominante. Mas inequivocamente optamos em realçar a sua cor vermelha, que é a pulsão, o signo de vida e de morte. E não por acaso ele também parece estar saindo-entrando na gaveta entreaberta.

Nos quadrantes de um diário, é certo, a metáfora apela diretamente para o fluxo sanguíneo, porque é o exercício milagroso e vernacular do dia-a-dia, que só pára diante da morte. Ou continua, na vida eterna das melhores ideias e obras do artista.

Vale muito a pena pensar sobre o que continha aquele diário de Lidia Bais. Seus segredos e pormenores, em qualquer instância metafísica, são, principalmente hoje, elementos de pura materialidade na compreensão estética dos caminhos que traçaram a obra da artista.

Finalmente, a perspectiva do quadro parece ser propositalmente mal resolvida, sugerindo algum tributo a obras de grandes pintores - como Van Gogh - que se valeram de tais recursos de duplicidade. Principalmente quando se tratava de ambientes mais íntimos, onde o repasse autobiográfico era inteiramente ‘assumido’ na obra, a autoridade do olhar desmistificador prevalecia, e o que era acadêmico necessariamente se desmontava ora em luxúria, ora no lúdico e no onírico.

Lidia Bais, como boa iconoclasta, seguia exatamente os passos desses grandes mestres.

Francisco de Paula Vieira
Artes Visuais - UFMS - 2011