segunda-feira, 23 de maio de 2016

Quando da matriz e da cópia - gravuras do acervo do MARCO, exposição apresentada no Museu de Arte Contemporânea de MS, no período de maio a junho de 2016


Vânia Pereira, s/data, ponta-seca

O exercício curatorial abrange investigações conceituais que propõem novos desdobramentos ao discurso artístico. Consiste na reorganização e ampliação do campo de leitura estética a fim de ressignificar alguns sentidos existentes a priori.

Combinar linguagens e vislumbrar nas diferenças entre as obras possibilidades para extrapolar consensos requer cuidadosa articulação dos aspectos que estabelecem relações assimétricas entre elas, reposicionando estrategicamente a narrativa original para atender outras intenções de comunicação.

            A exposição Quando da matriz e da cópia reúne gravuras cujas imagens foram previamente trabalhadas numa matriz - madeira, pedra ou metal -  e impressas em papel. Apesar do princípio da multiplicidade, característico dessa linguagem, as cópias não diminuem a potência nem o valor individual de cada obra.

            O embate com a matéria (ato de gravar) sempre determina os caminhos para concepção dos trabalhos. A corrosão do metal, o talho na madeira e a acidulação da pedra são processos específicos para construção e fixação das imagens nas matrizes. Traços largos, linhas finas, tramas, manchas e gradação de tonalidades são faturas gráficas que compõem o repertório pessoal do gravador.

            A dramaticidade das imagens, geralmente, é valorizada através de relevantes contrastes entre preto e branco em rica combinação de elementos monocromáticos, ou, em alguns casos, com presença controlada da cor.

            Processo que exige concentração, atividade mental e intensa conexão entre o artista e a matéria, forjando relação de cumplicidade que combina controle e expectativa, tempo e ansiedade, desejo e realidade.

A linguagem da gravura é repleta de nuances, invenções e singularidades. Elaborada meticulosamente numa dimensão poética que atravessa o tempo e afirma sua permanência entre procedimentos dissonantes da produção artística contemporânea. 



Rafael Maldonado*
abril, 2016

*professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atua como curador independente.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Estratégias para dimensionar a delicadeza e o afeto, exposição de Ana Ruas na galeria Andrea Rehder Arte Contemporânea, em São Paulo, de 18 de maio a 27 de junho de 2016



Ana Ruas, 2016, assemblage


Sem pretensão de questionar o papel da mulher e os desdobramentos de sua atuação social, nessa série de trabalhos Ana Ruas se apropria de artefatos jornalísticos produzidos no Brasil entre as décadas de 1930 e 1960, com o intuito de revelar o discurso que idealizou a condição feminina na personificação da esposa prendada, submissa, dedicada ao lar e à família.
Nesse período, a educação da mulher visava suprir demandas domésticas na execução atividades manuais que eram, geralmente, passadas de mãe para filha. Corte, costura e bordado faziam parte das prendas que a esposa deveria exercer em sua função familiar, e, nesse contexto, publicações voltadas para o público feminino, tais como o Jornal das Moças e o Jornal da Mulher, ofereciam suplementos e encartes dedicados à essas atividades. Quase como estratégias para dimensionar a delicadeza e o afeto.
Ana Ruas trata, sem pieguismo, desse momento cultural que definiu o campo de atuação das mulheres sob imposição de valores morais que restringiram sua atuação na sociedade. A artista não se pronuncia criticamente, mas pontua a condição da mulher realçada, por exemplo, na indagação do artigo publicado num dos jornais de seu arquivo: “você está pronta para ser uma esposa amiga?”.
De posse de vasto material (colecionado e guardado por pessoas da família) que inclui recortes de revistas e encartes de jornais para o público feminino, além de moldes com sugestões de figurinos e ilustrações de diversos temas para atividades como pintura, bordado e costura, Ana Ruas retoma e amplia o repertório de discussão de questões, outrora evidenciadas em momentos distintos de sua produção.
As imagens e os textos selecionados pela artista são encarados como faturas estéticas que ganham nova significação na estrutura visual dos trabalhos. Na combinação entre pintura e colagem sob suportes de papel e madeira, Ana Ruas expande a questão/função pictórica que ora se manifesta no plano bidimensional (frente), ora se revela na tridimensionalidade (frente/verso) de pequenos painéis que se movimentam pelas dobradiças que os unem, revelando informações que ficam evidentes ou ocultas, em função da posição determinada pelo observador.
O jogo que aqui se estabelece valoriza a diluição do processo artístico homogêneo e propõe parâmetros de conversão da pintura na incorporação de elementos que, na medida da visualidade, contribuem para ressignificar a linguagem e ilustrar o teor interessado de cada trabalho.
Operando entre pintura, colagem e objeto, a artista regula a plasticidade das linguagens de modo a obter, pelos contrastes, uniformidade e conexão entre elas. Reorganiza e combina elementos que primam pela fragilidade, delicadeza e transparência, com outros de opacidade, aspereza e rigidez, numa proposição estética ampla de variações e possibilidades.


Rafael Maldonado*
maio/2016

* professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, atua como curador independente.