quinta-feira, 4 de agosto de 2022


William Menkes, da série Fragmentos de luz, 2020, água-tinta, 30x21cm


Mostra CONTINUUM



Continuum, palavra derivada do latim, pode ser traduzida literalmente como contínuo e representa uma série de acontecimentos sequenciais em que se percebe a continuidade de algo entre o início e o fim.

A partir dessa ideia, a mostra homônima reúne obras produzidas pelos ex-alunos da graduação em Artes Visuais da UFMS, Alice Yura, Evandro Prado, Kaio Ratier, Mariana Arndt, Leonardo Mareco, Lúcia Ribeiro, Luís Salgado, Victor Macaulin, William Menkes e Zilá Soares, artistas que seguem com investigações que sinalizam plena autonomia na elaboração de seus interesses estéticos/conceituais, dando continuidade ao processo de formação para se inserir ou se consolidar profissionalmente no circuito artístico local e nacional.

Os trabalhos reunidos exemplificam a multiplicidade e o hibridismo da produção contemporânea com propostas desenvolvidas em pintura, desenho, gravura, fotografia, videoarte entre outras. Traduzem as inquietações e os acontecimentos que entrecruzam as trajetórias dos artistas, tais como o cotidiano e suas problemáticas sociais, memória afetiva e o contorno geográfico de culturas e lugares, assuntos pertinentes que aguçam o pensamento criativo e ampliam a capacidade de perceber e revelar algo.

O trabalho de Alice Yura opera um repertório sensível que mescla fatos biográficos, sentimentos e relações humanas, identidade e gênero, o corpo e sua transformação. Performance, fotografia e videoarte são meios usados para amplificar a voz engajada da artista que propõe uma reflexão mais atenta sobre algumas questões sociais, entre elas, a ruptura da cisheteronormatividade.

Em dois momentos distintos de sua produção, as obras de Evandro Prado afirmam sua percepção crítica de temas relacionadas ao poder e à crença, questões que se contaminam e produzem efeitos sociais significativos. Seja num detalhe arquitetônico do Palácio da Alvorada, sustentado por uma frágil estrutura corroída ao longo do tempo, seja na relação inusitada entre religião e o consumo massificado de valores e marcas comerciais. Se apropria de imagens religiosas, personagens e monumentos históricos para, de forma contundente, desconstruir e ressignificar valores desgastados da sociedade contemporânea.

Kaio Ratier usa como referência em suas pinturas as ilustrações e o papel das revistas de moda de luxo na França, no início do século XX, mencionando a ativa participação dessas publicações na sociedade europeia, consideradas como fenômenos de mídia e responsáveis pela instituição de comportamentos. Na série Elegância e Sobrevivência, o artista representa o processo de libertação do uso do espartilho, o que determinou uma nova concepção do feminino. Observando também a maneira como as revistas e a sociedade reagiram às vésperas e durante a primeira guerra mundial, em outra proposta, de forma inusitada, insere na personagem uma máscara de gás como acessório necessário do traje de luxo para festa.

Leonardo Mareco chama atenção para os problemas econômicos dos que enfrentaram dificuldades e perdas durante o processo de isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Através de técnicas como lambe-lambe (pôsteres artísticos geralmente fixados em espaços públicos) o artista ilustra uma atividade informal que foi e ainda é uma opção de renda para milhares de trabalhadores, o serviço de delivery, mencionando a precarização do trabalho, o desemprego e a pobreza tão evidentes no cotidiano das cidades em função da crise socioeconômica que o país enfrenta.

As gravuras de Lúcia Ribeiro materializam algumas das memórias afetivas da artista. A arquitetura de um antigo engenho de açúcar, a paisagem interiorana paulista e a história que sobrevive ao tempo são elementos articulados numa monocromia gráfica que ressalta o aspecto bucólico dos cenários escolhidos. A paisagem é tema recorrente na produção da artista, explorando na gravura em metal (técnica artística em que a imagem é gravada numa matriz de metal e depois impressa em papel), os efeitos da corrosão do ácido na placa de cobre para definir as nuances de cinza e preto que definem a paleta monocromática nas imagens.

Luis Salgado busca em suas abstrações provocar o ato perceptivo do observador para a interpretação livre daquilo que se vê, daquilo que é possível reconhecer sem necessariamente se prender a um porquê ou para quê. Cor, símbolos, manchas, são recursos que formam sua grafia pictórica, reforçando a amplitude da imagem para estimular nosso raciocínio, de forma a ultrapassarmos o limite do reconhecível que muitas vezes inibe o acesso à informação na obra. Percipuum, conceito sobre percepção na semiótica peirceana, é a questão que o artista busca elaborar visualmente nesta série de pinturas.

Mariana Arndt chama a atenção para o trabalho infantil e faz relações com elementos característicos do imperialismo norte-americano que, nas imagens, aparece exemplificado pelas marcas multinacionais Coca Cola e Burger King, salientando nesse discurso o alcance das ações agressivas do capitalismo. Faz intervenção em vermelho nas cenas retratadas como forma de salientar a violência simbólica do processo de imposição de determinados valores culturais. A grafia aparente nas imagens foi realizada por um menino que vive na fronteira Brasil/Paraguai, com frases da música Latinoamerica - Calle 13. Traz para a discussão questões comuns entre os dois países: pobreza, desigualdade social e descaso para com os direitos humanos. Na leitura possível do que é retratado, cito o trecho final da canção mencionada: No puedes comprar mi vida!

A problemática social é salientada em diferentes abordagens nos trabalhos de Victor Macaulin. No graffiti, na pintura e no desenho, a questão racial, a luta da classe trabalhadora pela sobrevivência e pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, são alguns dos temas desenvolvidos na produção do artista. Em sua pesquisa plástica, usa tintas confeccionadas com pigmentos naturais (terra, carvão, cinzas entre outros) combinando-as com materiais industrializados sob suportes alternativos, entre eles o papelão, material comumente descartado e reutilizado nos processos de reciclagem. Evidenciando o trabalho de coleta seletiva de resíduos, trata de duas questões importantes desse contexto: o trabalhador que recolhe o lixo e a ação pública que visa minimizar danos ao meio ambiente.

Cor e luz são elementos importantes na obra de William Menkes. No protagonismo do preto e branco na gravura artística, o artista manipula matrizes de diferentes cores para elaboração de imagens que retratam alguns de seus cenários cotidianos. O controle articulado entre claro e escuro ora realça contrastes de luz e sombra no desenho, ora reduz a iluminação para que os objetos se insinuem numa penumbra densa tratada em tons de ocre, sépia e preto, criando, a partir dessa combinação, uma atmosfera poética de silêncio e de mistério.

Nos desenhos de Zilá Soares, as formas dos corpos masculino e feminino são esboçados e enquadrados estrategicamente para se evidenciar/insinuar as áreas sensuais que estimulam diversos pensamentos e desejos. O nu artístico sempre foi um tema recorrente na história da arte, representado de forma clássica ou nas distorções dela. Um interesse que atraiu e atrai artistas para a elaboração de distintas visualidades que, em alguns casos, provocam o comportamento voyeur do observador. Com poucos elementos e recursos gráficos, a artista sintetiza a interpretação do corpo humano para mencionar sobre nossa relação com a nudez, padrão estético de beleza, sensualidade, erotismo e as diversas interpretações e significados que damos a isso.

Um conjunto diversificado de 20 obras que ilustra de forma coesa o discurso polissêmico da arte contemporânea. Da figuração à abstração, cada artista desenvolve e materializa suas propostas através de experimentações em diferentes linguagens plásticas, resultando em direcionamentos estéticos apoiados ou não na tradição de representação.


Rafael Maldonado
Curadoria/Julho/2022

Mostra Continuum
De 8 de agosto a 9 de setembro de 2022
Galeria de Artes Visuais da UFMS
Piso térreo do Bloco 8, Campus Universitário S/N, Campo Grande - MS


 



ÁLBUM 4 MÚLTIPLOS

 

O múltiplo de arte é uma modalidade de produção de obras que quebra com algumas categorias tradicionais da arte. Permite, em função da adoção de diferentes matrizes ou procedimentos tecnológicos geradores de exemplares, a criação de cópias seriadas onde cada exemplar possui autenticidade de original. O álbum 4Múltiplos apresenta essa possibilidade plural no trato da obra seriada, ilustrada nas propostas de Constança Lucas, Isaac Camargo, Rafael Maldonado e Sérgio Bonilha.

O conceito de multiplicidade na arte contemporânea transita em diferentes linguagens, suportes e processos de produção, funcionando como estratégias de circulação de ideias sem que se diminua a importância dessa modalidade em relação às que operam com o singular, com o exemplar único. A pluralidade se dá tanto conceitual quanto materialmente. O múltiplo de arte não é considerado obra de menor valor, tampouco põe em questão a importância e a integridade da imagem, mas sua proposição viabiliza o alargamento do campo de ação e consumo de trabalhos produzidos em série em linguagens como gravura, fotografia, escultura, imagem digital, objetos entre outras.

Constança Lucas elabora na trama minuciosa de linhas uma rede de formas geométricas irregulares que, combinadas, atuam para compor a massa visual e rítmica do desenho. Na repetição da palavra paz, disposta em intervalos aleatórios, explicita uma mensagem atual e urgente que ecoa entre os efeitos gráficos de pontos e traços delicados.

Isaac Camargo opera na aproximação da fotogravura usando a imagem digital impressa em papel, transposta e fixada em lâminas metalizadas. Num processo de manipulação meticulosa faz menção aos primeiros experimentos da fotografia, buscando no desbotamento intencional da cor, meios para revelar as nuances de memórias pessoais.

Rafael Maldonado reposiciona a paisagem na geografia e temporalidade de um lugar idealizado. Os elementos são modelados pela fatura de entretons monocromáticos da água-tinta (técnica de gravura em metal) que estabelece o clímax articulado da imagem, onde tudo se define no recorte instantâneo que enquadra e perpetua a cena.

Sérgio Bonilha adota procedimentos combinados (tomada fotográfica, edição digital, serigrafia e corrosão em ácido) para gravar em fenolite cobreado uma paisagem reticulada, atualizando os modos de apropriação e incorporação de tecnologias na arte em prol de redirecionamentos estéticos, traduzindo, na complexidade da linguagem, sua percepção de objeto múltiplo.

Os trabalhos que compõem este álbum exemplificam a concepção do múltiplo trazendo abordagens distintas no manuseio da imagem, ampliando, assim, a significação do sentido da obra artística.   

R.M./ Abril/2022